terça-feira, 27 de outubro de 2009

A Arte de Desencantar

Tudo nasceu do olhar indireto entre eles—ele não via que ela o mirava através das lentes sujas. Ela nem sabia que ele a olhava pelo opaco líquido sobrando dentro do copo. Estavam ambos perdidos em noite suja. Não a noite de Plínio Marcos. A sujeira da noite dos dois era puramente lírica---amores mal resolvidos, livros nunca escritos, punhos que não foram cortados por conta de outros amores, estes, mais avassaladores.

Apesar de não saberem que se viram antes do momento-agora, sentaram-se à mesma mesa, sincronizados. Ele não a convidou nem ela se ofereceu ao encontro. Aconteceu. Ela tirou as lentes e ele moveu o copo para o lado. Ele cruzou a perna em direção à ela, e ela respondeu o gesto virando o seu corpo para ele. Ele não notava que a desejava já, com as pernas. E ela, reciprocamente, com o corpo completo. Ficaram assim, fumando juntos, rindo juntos, se descobrindo juntos. O desejo entre eles era natural. Falaram dos casos mal resolvidos e dos livros. Tiveram vontade, mas faltou-lhes coragem de visitar os cômodos febris da memória, onde vivem os fantasmas dos que mereciam um ato estólido de amor.

Também falaram da infância... meu Deus, tão iguais. Da feiúra na adolescência e de ambos debandes. Beberam, fumaram, riram risos tímidos. A madrugada foi caindo pesadamente sobre a mesa, sobre suas pálpebras. Levantaram-se e caminharam lado a lado na mesma direção porque ele alterou o próprio percurso para que coincidisse com o dela. Ela vagarou o passo e ajustou-o ao dele. Depois foi só silêncio. E orvalhada.

Prometeram-se cartas e telefonemas, e só. Vê-la seria errar por completo. Ela queria tanto que ele garantisse um novo encontro. Pela primeira vez, discordavam. E daí pra frente foi só desencontro. Ele escrevia, não como deveria escrever quando se escolhe amar pela metade. Eram doces suas frases, como gosto da carne de um caqui onde já não há vestígios do sabor adstringente das frutas imperfeitamente amadurecidas. Ela respondia, quase rasgando os pulsos e deixando correr o sangue morno. Ele cantava para ela, mesmo desafinado. Ela pintava pra ele. E repintava insistentemente o mesmo objeto, não buscava o fim. Preferiam o futuro truncado. Ele, passava os dias sonâmbulo, distraído em delicadezas, ela galopava entre avalanches de sesações-memórias e desejos de Adão. Pela noite, ela não sonhava e sim acumulava pesadelos—ele se partindo ao meio, ela o costurando, ele sangrando, ela o secando. Quando ela finalmente sonhava, quisera avidamente serem estes os sonhos de premunição, ele não os via. Quando ele ligava, ela sempre ocupada. Quando ela retornava, já era madrugada. Ele, entocado e ela, coração avivado.

Até que um dia ele sumiu. Era um homem que acumulava nãos. Ela, que era toda sim, ainda escrevia, procurava. Ele? Ela já não mais sabia. Sentou-se à janela. Dia após dia, rescreveu os versos dele, a imagem dele, a voz dele—em páginas tristes, em telas virgens, em melodia de voz muda que corre desvairadamente dentro da cabeça. Na poeira acumulada no vidro, ela rabiscava o próprio fado. Depois apagava tudo. Esvaziava a alma. Miúdo, oco e frágil como casa abandonada de pássarinho, seu coração se encheu de revolta sem fim. Era fato: o mundo era repleto de meio-homens, minotauros dos tempos modernos, presos em seus labirintos de medo, cegos por suas fragilidades, devorando suas presas através da arte do desencantamento. Ela secou a cara, rasgou as cartas, cuspiu nas telas e apaziguou o próprio infortúnio prometendo a si mesma, ser mais sagaz. Escreveu outras estórias. Desde então passou a enxergar o outro cara-a-cara. Olho-no olho. Desde de o primeiro olhar.


5 comentários:

Rêzinha Born disse...

Isso, Juju!

Sagacidade! Essa é a nossa palavra de ordem!

Juju delfim disse...

POis é, Rê, sem sagacidade não se pode renascer!

Layla Tom disse...

Julieta,
"Era um homem que acumulava nãos. Ela, que era toda sim, ainda escrevia, procurava".
Você já explicou tudo...
Lindo!

Juliette Delfin disse...

Layla, amiga,

Já? Então me explica!

Bjs,
Juju

Lady Shady disse...

Maravilhoso !!!!
Lindo!!!!

bjs, bjs
saudades de ti!